segunda-feira, 23 de março de 2020

O Improviso e o Jazz

Nessa estreia quero logo encarar os fatos: o preconceito é danoso. Todo mundo concorda com isso, mas em música (como em qualquer manifestação artística), as pessoas não se importam em serem preconceituosas. Podemos ter preferências, mas temos que estar prontos para o futuro. Como você está conectado no amanhã e é assinante hoje de um jornal do amanhã, teremos boas conversas por aqui.

Existe uma tendência natural da nossa sociedade para os rótulos. Temos carros de passeio, de esporte, utilitários; trajes de verão, de inverno e de meia-estação; cozinha brasileira, internacional e italiana. E assim por diante. Alguns desses rótulos são mais "explicações" do que propriamente uma "rotulação", mas todos buscam enquadrar um determinado assunto. Mas e a música? Será que ela pode ser enquadrada? De certa forma pode. Clássico, rock e jass são definições claras. Até surgir o Rock Progressivo, o Jass Rock, Samba Reagge, que embaralham qualquer definição. Muitos artistas se colocam num limite muito estreito, a um milímetro de tudo... ou nada.

Quando Miles Davis lançou Bitches Brew, o mundo literalmente não entendeu nada. Muitos críticos, senão todos, arrasaram o disco. Quando ele gravou Man With The Horn após um longo período afastado, foi um novo susto. No seu último disco Doo Bop (lançado postumamente em 1992), ele fundia rap e jass. Miles deixou de ser um jazzman? Picasso deixou de ser um pintor quando aderiu ao cubismo?

Picasso não deixou de ser pintor, da mesma forma que Miles não largou o jass. Os dois são indiscutíveis gênios, e como tal romperam com suas respectivas tradições, mas nunca com sua essência. Por mais que os puristas (ou os ortodoxos) odeiem, o jass não é uma arte folclórica, que possa ser estudada com início-meio-fim. Ele está vivo e sua evolução é a maior prova disso.

Na abertura do programa Free Jazz anos atrás, Nelson Motta disse que o charme do jass era a improvisação. Mas não é bem assim, improvisação é a alma do jass. Existem muitos métodos que ensinam como improvisar, mas o bom improviso depende unicamente do artista e nunca de regras. Pode ser uma única nota ou uma cascata de notas, mas só o verdadeiro jazzman sabe como, quando e onde coloca-las. E esta é a grande diferença. Tanto no rock quanto no clássico, existem grandes solistas, mas pouquíssimos improvisadores.

A Fantasia clássica era inicialmente (no século XVI) uma composição instrumental que adotava a estrutura do ricercare (do italiano “procurar, inventar”), mas que foi abandonada posteriormente (século XVIII), transformando-se em “uma espécie de sonata de construção menos rígida”.
No rock ouvimos muitos solos, mas pouquíssimos são improvisados. Basta compararmos com as gravações ao vivo. Poucos músicos se arriscam a alterar seus solos, e esta é a palavra chave: ARRISCAR.

Improvisar é “não saber qual a nota seguinte”. Durante o improviso o músico entra em uma espécie de “estado de graça”. Só ele e sua música. Nem mais seu instrumento está lá, visto que este é apenas isso: um instrumento para o momento maior. Certos músicos improvisam como se passeassem no parque (Bill Evans - piano, Philippe Catherine - guitarra, Paul Desmond - sax alto); outros parecem duelar com o diabo (Jeremy Steig - flauta, Clifford Brown - trumpete, Michael Camillo - piano) e ainda os que “conversam” com seus instrumentos (Oscar Peterson - piano, Jim Hall - guitarra). Mas todos tem em comum o fato de criarem algo inteiramente novo cada vez que tocam uma música.
O que eu quero chamar atenção, é que o jass não é uma arte estática (nenhuma arte pode ser, mas a música é a que mais sofre com os rótulos) ele assume suas influências e mistura-se sem a menor cerimônia. Duke Ellington, Miles Davis, Dizzy Gillespie, Ornette Coleman e outros nos mostraram o caminho. Traditional, New Orleans, Be-Bop, Cool, Free-Jazz, Jazz-sinfônico, Latin-jazz, Jazz-rock, World-Jazz, Acid-Jazz, não importa o nome. Existe jass para todos e para todos os gostos.

Daqui prá frente, vou escrever sobre discos e shows (na verdade tudo o mais ligado à música) desde os que ferem os ouvidos dos puristas, até os que fazem a alegria dos mais ortodoxos. Enquanto isso vou ouvindo um pouco de Meade-Lux-Lewis, Milton Nascimento, Tribal Tech, Jelly Roll Norton, João Bosco, The Chick Corea Elektric Band, Miles Davis & Marcus Miller, Miles Davis & Gill Evans, Charlie Christian, Kazumi Watanabe, Joe Zawinul & Benny Carter, Weather Report, Charles Mingus, Jaco Pastorius...

(texto originalmente publicado na revista digital Teclas & Afins)